Olhe Direito!

Olhe Direito!

LUTO

As muitas vidas de Niède Guidon

 Álvaro Fernando Mota

Quinta - 05/06/2025 às 11:11



Foto: Trajetória de Niède Guidon
Trajetória de Niède Guidon

Faço parte das pessoas que “conheceu” Niède Guidon mesmo tendo estado com ela um par de vezes, talvez um pouco mais, com cumprimentos formais que as ocasiões exigiram. Nada de um contato mais próximo, mas mesmo assim eu a “conhecia”, porque o trabalho dela fazia dessa cientista uma onipresença em nossas vidas de piauienses.

Sou daqueles que quando nasceu, Niède já desbravava a Caatinga da Serra da Capivara, na aridez sertaneja de São Raimundo Nonato. Porém, somente quando já era um advogado formado e, nessa condição, atuando como procurador, é que tomei conhecimento mais amplo do trabalho tanto importante quanto pioneiro e, sobretudo, corajoso dessa cidadã brasileira com sobrenome francês a naturalidade paulista, mas piauiense por opção e certamente amor à terra que usou como base de uma pesquisa científica ousada.

Diz-se ousada porque é certo que não foi fácil para ela encarar, no começo dos anos 1970, quando se embrenhou pelas matas e veredas da Serra da Capivara, as dificuldades próprias da conjuntura e das estruturas de então ainda assim, prospectando a riqueza das pinturas rupestre e depois liderando escavações que reescrevem a História da ocupação humana no continente americano.

Ela viu bem mais do que antes, alguns enxergavam apenas como curiosidade. Sua pesquisa projetou o Piauí para o mundo. Embora controversa, por não ser ainda aceita de modo pacificado, é fascinante a sua hipótese de ocupação humana do continente anterior às hipóteses que todos aprendemos nos manuais de História, a chamada Teoria de Behring e a Teoria Transoceânica.

Para além da ideia realmente ousada de que africanos e não asiáticos teriam sido os primeiros a ocupar o continente americano, 49 mil anos atrás, bem antes do que a História chama de Neolítico, Niède Guidon também mostrou coragem para confrontar a mentalidade política local, os que viam como uma extravagância de uma mulher paulista as ideias de preservação e conservação da natureza.

A luta dela contra a ignorância, portanto, fê-la tão grande quanto seu rigor científico, bem assim é evidente sua capacidade de atuar politicamente sem renunciar a princípios inegociáveis. Assim, para além de cientista, ela foi um ser político de gigantesca monta que trabalhou muito para construir tanto estruturas físicas quanto estruturas mentais definitivas em favor de uma visão econômica socioambiental sustentável no Sudeste do Piauí.

A mim não parece sem razão, por exemplo, que o esforço conservacionista e preservacionista de Niède Guidon produza efeitos práticos na vida de pessoas na região de São Raimundo Nonato, como, por exemplo, a existência de um turismo como negócio sustentável ou de um aumento da produção de mel de floradas nativas graças à existência de dois parques nacionais – Serras da Capivara e das Confusões – criadas por inspiração de trabalho da cientista.

Por tudo isso, são muitas as vidas vividas por uma cientista cujo corpo físico agora jaz na terra que ela escolheu para viver e morrer.

Álvaro Fernando da Rocha Mota é advogado. Procurador do Estado. Ex-Presidente da OAB-PI. Mestre em Direito pela UFPE. Doutorando em Direito pela PUC-SP. Ex-Presidente do CESA-PI e atual Presidente do Instituto dos Advogados Piauienses – IAP.

Álvaro Mota

Álvaro Mota

É advogado, procurador do Estado e mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Álvaro também é presidente do Instituto dos Advogados Piauienses.
Siga nas redes sociais

Compartilhe essa notícia:

<